Patrick Modiano: "Depois do Nobel, vou começar do zero"
O que pensar de um Prémio Nobel que diz ter aprendido como os empregados de uma empresa de mudanças a domar a escrita? Ouçamos o que Patrick Modiano tem a dizer: "Houve uma altura em que estava tão crispado com a escrita que só escrevia duas frases por dia. Então, observei uns homens que carregavam caixotes muito grandes numa mudança que estava a acontecer no meu prédio e questionei-me como eram capazes de levantar tamanho peso. Perguntei a um deles como o conseguia, que explicou ser necessário colocar o corpo numa certa posição e tudo ficava mais fácil. Foi quando percebi que era como o esforço da escrita, quando o livro cria grande tensão a quem o escreve e nem se sabe que posição tomar ou até como respirar. Uma lição do homem das mudanças que não esqueço".
O prédio onde Modiano vive fica numa avenida do Quartier Latin em Paris, ao lado de vários alfarrabistas, e é de construção muito antiga. Tem um pé direito superior a quatro metros e a porta de entrada para o apartamento é suficientemente alta para que o metro e noventa e sete que o escritor mede passe entre as ombreiras sem roçar com a cabeça, como lhe deverá acontecer frequentemente. A mesma porta que tem uma faixa de tecido - à antiga - que ao ser puxada faz tocar um sino a anunciar a chegada dos visitantes. O som da campainha ecoa no interior da casa como os passos de Modiano quando atravessa as divisões. Não atenderá o telefone durante a entrevista - não tem telemóvel -, e opta por ficar num sofá vermelho espaçoso, mesmo que raramente se encoste à almofada pois este tipo de conversa sobre si e os livros provoca-lhe alguma tensão. Apesar de disponibilizar mais de duas horas para a entrevista e aceitar tirar fotografias sentado à mesa de trabalho, enquanto o entardecer parisiense caia e tudo ficava de noite.
Patrick Modiano não é um entrevistado fácil, afinal detesta a vida social que a literatura proporciona. Dizem que é snob, mas o que mais parece ser é guardião da sua privacidade enquanto escritor. Tanto assim que deve ter sido o único Prémio Nobel da literatura que se recusou a fazer um périplo após o anúncio e participar no circuito habitual de deslocações ao estrangeiro em que a adulação ferve. No entanto, se o seu aspeto é o de um cavalheiro respeitável, durante a conversa confirma alguns dos maus comportamentos que teve na juventude, como o de ter fugido duas vezes do colégio onde estava como interno. Há outras histórias sobre estes tempos de adolescente, como o de se ter incompatibilizado definitivamente com o pai aos 17 anos, ou de roubar livros para vender posteriormente e assegurar o sustento da mãe abandonada pelo pai.
Também comenta o jornal que o está a entrevistar ao recordar que comprou nos bouquinistes à beira do Rio Sena um álbum sobre uma visita da rainha de Inglaterra que o Diário de Notícias editou nos anos 50. Em troca, conto-lhe que deve ter sido dos poucos jornais que entrevistou Hitler. Ri-se, ele que tomou o tema da ocupação alemã como eixo central de toda a sua obra desde o dia em que em 1968 publicou o primeiro romance: Place de l'Étoile. Patrick Modiano teria então 20 anos segundo a biografia que a editora Gallimard disponibilizou, ou 22 de acordo com a certidão de nascimento, e fez um livro "arrogante e próprio da juventude", que entretanto aligeirou nas provocações aos judeus ao publicar uma nova versão. Nascido a 30 de julho de 1945, tinha pouco mais de um mês quando a 2 de setembro o Japão se rende e é declarado o fim oficial da II Guerra Mundial. Mas esse conflito vai marcá-lo para sempre como se fosse vítima da radioatividade das bombas nucleares deitadas sobre Hiroxima e Nagasáqui, deixando numa obra com meio século a presença constante da ocupação de Paris pelo Terceiro Reich, do colaboracionismo e do holocausto. Como se essa possibilidade de argumento não fosse suficiente para um único romance, Modiano vai espraiá-lo por mais de trinta livros como se cada um fosse o capítulo de um único romance em construção e criar um adjetivo - modianesco - que define as suas personagens.
Uma teimosia num tema literário que se tornou estranha para muitos, mas que lhe concedeu o Prémio Nobel em 2014, para surpresa do mundo e do próprio: "Sempre pensei no Nobel como um Prémio para os grandes mestres do pensamento, como Albert Camus." A humildade da afirmação confunde-se com a mesma que adota quando se questiona o seu grande tema obsessivo, justificando o poder da memória desses primeiros anos de vida até à adolescência como suficientemente forte para o orientar no mistério que é cada início de romance.
Uma memória que se confronta com os cheiros das casas dos amigos onde os pais o deixavam amiúde, as vozes dos adultos em código, os nomes estranhos que tinham e que o tempo foi deturpando... Uma memória que no ano passado comprovou estar a desaparecer numa Paris em constante mutação arquitetónica ao notar que os Campos Elísios estavam diferentes daquilo que conhecera... Uma memória que é recuperada ao darem nome a uma rua com o título de um livro seu, Dora Bruder... Uma memória que, num golpe de teatro a meio desta entrevista, ele próprio parte em mil pedaços ao declarar que poderá abdicar da sua vida literária como até hoje aconteceu e partir do zero aos 70 anos naquilo que a partir de agora irá escrever.
O Nobel muda sempre a vida do autor. Mantém a sua personalidade?
Como comecei a escrever há 50 anos já passei por muitas coisas que mudaram nas duas ou três gerações com que convivi. O que há de novo é a pressão que vem com o Nobel. É como um choque elétrico! A partir do anúncio senti que me desdobrei em duas pessoas.
Quando regressa à escrita ainda tem a liberdade anterior ao Nobel?
Sim, mesmo que me lembre do que dizia um escritor americano sobre os que recebiam o Nobel: a partir daí poucos faziam alguma coisa de bom. Era uma época em que o Prémio era dado a pessoas com uma certa idade e o que penso é que o Nobel pode ao mesmo tempo dar a possibilidade de um recomeço e de se encontrar uma virgindade completa. Porque temos a impressão de que podemos começar do zero, o que é muito estranho.
Não vai agora mudar a temática de toda a sua obra?...
Não sei... Inconscientemente, eu gostaria de mudar e um acontecimento destes provoca um clique tão estranho que posso estar perante um corte. O Prémio Nobel deu-me a possibilidade de poder começar do zero e partir para novos temas.
Então, está num cruzamento em que se questiona sobre se continuará a escrever como até agora ou se vai recomeçar tudo do zero?
Sim, é isso mesmo. Sinto que já não estou condenado a escrever todos os dias a mesma coisa. Até posso fazê-lo, mas de um modo diferente do que fiz até agora porque este momento do Nobel é como uma metamorfose. Pode-se escrever sobre as mesmas coisas, mas de uma forma diferente e descobrir outro modo. Um acontecimento como este provoca um eletrochoque capaz de me fazer partir noutra direção. Sim, porque se queremos continuar a escrever após o eletrochoque é-se obrigado a procurar um novo caminho.
No entanto, ao ler-se a sua obra podemos achar que cada livro é o capítulo de um grande romance...
É verdade, porque há uma ligação direta à nossa época, onde não se podem fazer as coisas senão de forma fragmentada. Os livros estão ligados e, se utilizássemos um computador, poder-se-ia uni-los todos e organizá-los como melhor ficassem. Até porque repito ideias que esqueci ter já escrito, o que confirma o facto de serem fragmentos.